Fundamentos



O que nos fez chegar até aqui?
A família na Pós-Modernidade passa por grandes transformações que, de fato, merecem toda a atenção das pessoas que integram a sociedade, neste sentido, de forma a compreender melhor o fenômeno, propõe-se um estudo da família dentro da Ciência do Direito objetivando a recepção destes novos modelos familiares.
Para entendermos melhor a situação brasileira ante a questão homoafetiva, devemos olhar com cuidado a Codificação do Sistema Civil Brasileiro no inicio do século XX, mais especificamente em 1916 sob o comando de Clóvis Beviláqua. É necessário também que seja estudado o contexto social ao qual o Brasil vivia no período de feitura do Código Civil de 1916 onde a questão liberal burguesa era o espectro que rondava a sociedade brasileira, uma herança da Revolução Francesa do século XVIII.
A família no século XIX, que evidentemente é representada no Código Civil de 1916, era traçada e definida de forma muito clara, constituída por alguns pilares básicos como, por exemplo: uma família matrimonializada, patrimonializada e machista no sentido de que o homem exercia o papel de “Estado Absolutista” e controlava todas as relações familiares. A vontade da mulher era determinada pelo homem e sua tarefa era apenas resolver as questões do trabalho da casa. Os filhos homens também sofriam enormes restrições, mesmo sendo a figura mais importante depois do Pai. As filhas eram sujeitadas a vontade do pai em todos os aspectos e deviam apenas esperar um casamento para que pudessem figurar no plano da existência, mas apenas como pessoas que cuidariam da casa e dos seus respectivos filhos.
Afirma Orlando Gomes:
A influência da organização social do Brasil Colônia faz-se sentir até o final do século XIX, e é nos primeiros anos do século XX que começa a discussão do projeto de Código Civil elaborado por Clóvis Beviláqua. Natural, assim, que repercutisse, na sua preparação, aquele primitivismo patriarcal que caracterizou o estilo de vida da sociedade colonial. (GOMES, Orlando, Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil. São Paulo: Martins Fontes, 2008)
E conforme Simone Tassinari: O homem possuía o poder sobre a mulher e os filhos. Além disso, o vinculo não poderia ser desconstituído, pois em primeiro lugar estava a necessidade da preservação do patrimônio.”( CARDOSO, Simone Tassinari. Estudos de Direito Civil – Constitucional. In: Ricardo Aronne (Org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p.19-110.)
O que deve ser notado em todo este contexto dos séculos XIX e início do século XX é a carga que será depositada na formação do Código que será, necessariamente, uma espécie de vigia da família tornando cada vez mais “seguras” as relações desta, sendo vinculada a vontade do Código, e aqueles que não se enquadravam nestes conceitos estavam, definitivamente, excluídos do sistema jurídico nacional.
O ideal de completude oitocentista fica caracterizado no Código Civil de 1916 e consequentemente no “Novo” Código Civil de 2002, que se pode considerar uma reprodução do Código Civil de 1916 com pouquíssimas alterações que em nada são úteis para um novo contexto de sociedade pós-moderna que clama por novos paradigmas de racionalidade.
Chegando ao ponto de enfoque deste estudo, que são as uniões homoafetivas, encontra-se o problema que será discutido e analisado, sendo importante salientar a importância de uma nova interpretação na Ciência do Direito sobre este fenômeno social que é tratado com indiferença pela legislação civil brasileira.
O não reconhecimento das uniões homoafetivas não é uma grande surpresa em razão das heranças morais e religiosas, principalmente no que diz respeito ao direito de família conforme atenta Orlando Gomes: “O código incorpora certos princípios morais, emprestando-lhes conteúdo jurídico particularmente no Direito Familiar.” (GOMES, Orlando. Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil. São Paulo: Martins Fontes, 2008) Em nada é surpreendente também o não reconhecimento do Código Civil de 2002 das uniões homoafetivas em razão deste já nascer velho mas o que é realmente surpreende é o fato do Direito ainda possuir dificuldades acerca da tutela destas relações.
O fato de o Código Civil determinar o que é ou não passível de ser tutelado é extremamente perigoso, ainda mais quando o assunto esta ligado ao amor entre seres humanos, sendo que os reducionismos propostos em lei são os maiores problemas a serem enfrentado neste caso, pois em nenhum momento a lei civil trata de outros aspectos do amor senão os propósitos acerca da união de sujeitos heterossexuais.
O amor é um complexo, conforme propõem o Mestre Edgar Morin em sua obra “Amor, Poesia e Sabedoria”. Neste sentido, em analogia, pode-se pensar que o amor não pode ser reduzido somente a relação entre homens e mulheres pois este também pode-se dar entre sujeitos do mesmo sexo dada a sua complexidade. Sendo assim as codificações tornam-se demasiadamente reducionistas, pois não tratam o amor desta forma e sim como uma receita simplista onde apenas homem e mulher, conjugados, formam uma relação amorosa tornando esta definição descompassada com a realidade de uma sociedade complexa, multifacetada e plural.
Diante a ineficiência da Codificação, que se omite em relação a este caso concreto, parece razoável acreditar que tudo aquilo que não representa os interesses ou enseja dúvida para o codificador deve ficar de fora da legislação. Assim são importantes as palavras de Rodrigo da Cunha Pereira:
Um dos principais critérios de expropriação da cidadania sempre foi o de desconsiderar o diferente. Em outras palavras, aquilo que não conheço, não domino, ou não faz parte do meu universo, é mais cômodo ignorar ou repelir, pois assim não estarei ameaçado (CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. União de Pessoas do Mesmo Sexo. Disponível em: <http://www.rodrigodacunha.com.br/artigos_pub11.html> Acesso em: 14/05/2009) .
Com esta perspectiva é notável o conservadorismo do Código Civil e assim a sua ineficiência frente à sociedade, onde a incerteza e indeterminação são realidades com as quais a codificação não consegue conviver. Em face disso fica claro a necessidade da abertura da Ciência do Direito auxiliada pelos ramos que se propõem a contribuir para a melhor compreensão da realidade das famílias homoafetivas.
É sabido que a homossexualidade não tem uma origem definida por nenhuma ciência que se propôs a identificá-la, onde a medicina, biologia e outras não conseguem encontrar uma noção clara do que pode causar tal manifestação. Faz-se importante as palavras de Maria Berenice Dias: “Ainda que não se saiba se a homossexualidade decorre de fatores biológicos ou genéticos, sociais ou comportamentais, o certo é que não é uma opção livre”.( DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: Preconceito e a Justiça. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2006: p. 42).
Com a noção de que a homossexualidade não decorre de uma escolha livre, e que nenhuma ciência consegue responder origem desta manifestação, é necessário que se respeite a escolha do individuo que resolve exercer sua sexualidade de forma diversa aos demais membros da sociedade. Também se pode reconhecer a importância que as relações homoafetivas constituíram nas relações heterossexuais, no sentido de que aquelas relações terminam com o caráter simplesmente procriador das relações sexuais as vinculando, também, com a ideia de prazer e satisfação do desejo sexual. Importantes são as palavras de Anthony Giddens para esta realidade: 
Os gays, e não os heterossexuais, foram os pioneiros na descoberta de um novo mundo dos relacionamentos e na exploração de suas possibilidades. Foram forçados a isso, pois quando a homossexualidade saiu do armário, os gays não tinham como depender dos amparos normais do casamento tradicional. (GIDDENS, Anthony. O Mundo em Descontrole, 6 ed. São Paulo: Record, 2007).
O pensamento da alteridade será fundamental na construção desse estudo porque a impossibilidade de entendermos o outro, já que não há como explicá-lo, enseja a noção de alteridade para que se possa conviver com as diferenças que existe entre nós, ou seja, o outro e eu. Considerando a importância desse pensamento temos, a partir disto, clareada a noção de respeito que se deve ter com o outro e assim remetê-la as relações homoafetivas. Se o outro deseja exprimir sua sexualidade de forma diversa a minha, não há o que eu possa fazer, deve-se apenas compreendê-lo na sua diversidade e nunca buscar a imposição da minha vontade sobre a do outro, pois “quando a imperícia do meu ato se volta contra o fim buscado, estamos em plena tragédia”. (LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: Ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2004. p.23).
Com a dimensão complexa que a família adquire na pós-modernidade, torna-se impossível de determiná-la objetivamente através de normas e assim caracteriza-se a importância do discurso psicanalítico juntamente com as Ciências do Direito. Com as mudanças sofridas pela família, onde a formação do vínculo familiar não se da mais somente pela constituição do patrimônio, e o desejo e o amor são fundamentais para a constituição da mesma o caráter subjetivo da família vem a tona. Com os aspectos subjetivos da família, ligados ao desejo e ao amor, “compreender isto é fazer cumprir o Direito mais autêntico, é dar vida ao Direito e colocá-lo na vida.
Nesta banda, temos que reconhecer que não há como não tutelar este novo modo de família, dada a sua importância e a impossibilidade de entendermos a escolha feita pelo outro a respeito de sua sexualidade, assim, tutelar este modelo é fazer o Direito de Família viver novamente e fazê-lo voltar a ter contato com a realidade a que não pode estar alheio.

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