(Post final da série sobre as mudanças do paradigma familiar no Direito)
Podemos verificar que o Direito Civil não pode ser compreendido de forma absoluta e autoritária. Qualquer pretensão de identificar o Direito Civil somente ao Código Civil é extremamente temerosa. Vivemos em um mundo onde e complexidade das relações está cada vez mais em evidência. Não vivemos mais a partir das nossas vontades e devemos respeito ao outro. Não somos mônadas, vivemos em sociedade com outros indivíduos e para estes devemos compreensão.
Numa ordem pós moderna em que diversas possibilidades foram descobertas a homoafetividade vem inserida de forma clara, tão clara que já não podemos mais fechar os olho para tal realidade. A Codificação Civil enquanto absoluta foi destruída por novos horizontes constitucionais, dando condições de pensarmos a família homoafetiva orbitando no plano da Constituição.
Na banda das heranças do Código Civil, podemos identificar o quanto este foi carregado com modelos de pensamentos liberais burgueses pensados a mais de duzentos anos atrás e, conforme foi identificado em Bauman e Morin, estes pensamentos mostraram-se absolutamente insuficientes frente a uma sociedade pós moderna. Tudo que foi pensando naquele período tinha um propósito e este já não existe mais hodiernamente. Em detrimento destes ideais precisamos, cada vez mais, lutar por um novo paradigma de racionalidade no século XXI, que supere os dogmas e as verdades absolutas.
A homoafetividade é um resultado natural das evoluções sociais do século XX, contrariando toda uma estrutura moderna que, baseada em um forte moralismo dos bons costumes, jamais poderia contar com tamanha “novidade” em suas entranhas sociais. Não poderia aceitar isso como natural, pois acreditava que a homossexualidade tratava-se de uma anomalia que não deveria ser tolerada e buscou fundamentar este entendimento pelo cientificismo. Vimos que esta condição preconceituosa acabou sendo barrada, paradoxalmente pela ciência, esta que não conseguiu explicar a origem da homossexualidade, abrindo uma porta para a compreensão desta opção de vida em detrimento da sua conceituação.
Podemos analisar outros pontos importantes destes acontecimentos do século XX. Graças a inserção da mulher no mercado de trabalho, fruto da segunda guerra mundial, grandes viradas paradigmáticas vieram a tona. As primeiras rachaduras nas estruturas sólidas da modernidade apareceram e, conseguintemente, tudo que era determinado em certezas, conceitos prontos e verdades foram destruídos. Nada do que fora alicerçado no século XVIII resistiu à nova onda de incertezas e indeterminações inerentes a sociedade contemporânea.
Com efeito, vimos que a fundamentação da modernidade tornou-se um problema na pós modernidade. Tudo que carrega em seu cerne fortes raízes liberais burguesas foram objeto de críticas e o Direito ainda é um dos principais objetos de discussão, pois ainda resiste em mudar seus fundamentos. O mundo contemporâneo já não comporta fundamentalismos, portanto, o Direito deve construir sua virada paradigmática através da negação do seu fundamento. Isso parece estranho, mas de fato não é. O Direito só enxergará de forma mais evidente sua limitação quando compreender que seu fundamento pode o levar ao não-fundamento.
Modificada as relações sociais no século XX, nada mais natural que qualquer herança da modernidade fosse vista como insuficiente. Tudo que carrega o argumento do absoluto é insuficiente. Os manuais de direito são insuficientes, as leis são insuficientes, os juízes dogmáticos são insuficientes, docentes conservadores são insuficientes. A verdade é que existem muitas verdades, não só uma. O heterossexualidade é uma verdade, a bissexualismo é uma verdade, assim como o homossexualismo é uma verdade. Nenhuma delas se exclui, mas sim, se complementam. Cada uma destas verdades deve ser interpretada através de um todo e não só por sua visão limitada. Nada é tão separado nesse mundo que não possa ser tecido junto.
Ao analisarmos a família, também verificamos que seus precedentes históricos vieram modificando-se com o passar do tempo. Deixou de se constituir somente pelo matrimônio, como estava disposta nas codificações oitocentistas, passando a ser também formada pela simples união do casal sem a necessidade de um contrato, até chegar ao modelo homoafetivo de família. Não resiste a imutabilidade. Está sempre em contato com os fenômenos sociais. Abre-se constantemente buscando sempre a satisfação daquilo que acredita ser necessário.
Mais uma vez verifica-se que não existe possibilidade de uma conceituação daquilo que é família. Ele é mutável a todo instante e não admite definições. Vemos, então, mais uma vez, que a tentativa do codificador brasileiro em determinar o que é ou não família passou a ser um problema e não uma solução.
Tudo isso acaba nos remetendo ao ponto fundamental do pensamento de Levinas, a questão da alteridade. É no outro que começa a minha liberdade. Sou livre quando reconheço que é outro é algo intangível a minha racionalidade. O outro pode ser tudo, o outro é infinito e não posso compreendê-lo por eu ser absolutamente limitado em relação a ele.
Nossas relações estão cada vez mais (re)calcadas em uma tentativa de conceituar o outro, consequência da nossa própria herança racional moderna. Tentamos diariamente explicar tudo que acontece acreditando que a razão é capaz de responder a qualquer pergunta. De fato não é. A razão é falha muitas vezes, principalmente em assuntos ligados a afetividade. Temos relações cada vez mais efêmeras e os sentimentos emocionais são cada vez mais voltados para a satisfação momentânea dos desejos. Somos livres para agir assim, mas ao mesmo tempo precisamos nos responsabilizar por isso. Minha liberdade é também um jogo de risco. Quando agimos sem muita precaução para a satisfação de uma necessidade, se esquecermos do outro, estamos diante de uma forma de violência.
Nosso agir deve ser voltado para a compreensão do outro, o agir deve ser entendido como o primeiro ato para reconhecer o outro em sua diferença. É agindo que a sociedade e o Direito podem reconhecer as condições necessárias para voltar a viver. Sem isso, estamos construindo uma relação marcada pela agressão ao outro, onde não é possível compreendê-lo enquanto um ser diferente de mim, carregado de suas subjetividades onde a minha racionalidade não é capaz de alcançar.
Portanto, o Direito deve repensar suas bases racionais, superando qualquer vinculação com dogmas e abrindo seu sistema para contemplar tudo que ocorre na sociedade. Não pode mais permitir que ele mesmo produza a marginalização de certas escolhas humanas. A família homoafetiva está inserida num contexto de marginalização. O Direito tem o dever de resgatá-la e assim buscar promover a sua dignidade.
Todas as condições estão disponíveis, a partir de agora não há mais desculpas. A humanidade chegou a um ponto sem retorno onde ela assume seu papel de responsabilidade social ou começará um processo de definhamento do qual, provavelmente, não haverá mais volta.
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