quarta-feira, 4 de julho de 2012

A homoafetividade e a construção da identidade


Trata-se de um texto escrito pelo brilhante Vinícius Rauber, novo parceiro do Blog Direito e Homoafetividade, especialmente para os nossos leitores. Provocando reflexões importantíssimas sobre a questão homoafetiva, mormente através da filosofia e da sociologia, este texto representa uma excelente interlocução para um Blog de Direito que busca a transdisciplinariedade, para tratar de uma questão tão sensível e delicada, seres humanos e seus desejos.


A homoafetividade e a construção da identidade

Quando pensamos em modernidade ou modernizaçao, geralmente a primeira coisa que nos vem a cabeça é um processo que vai na direção oposta à tradição. Entretanto, a verdade é que ao mesmo tempo que a modernidade dissolvia parte da tradição, ela a reconstruía de outro modo. A persistência e a recriação da tradição foram fundamentais para a legitimação de algumas das formas de poder existentes, tendo como maior exemplo a forma como o Estado se impõem aos sujeitos. Ainda hoje, a tradição ainda abrange alguns aspectos fundamentais da vida social, como a família e a identidade social, ainda que esteja em declínio nestes domínios.

Para autores como o sociólogo britânico Anthony Giddens, o momento atual ainda é de transição. Vivemos um processo de destradicionalização, não apenas no Ocidente, mas também no mundo como um todo, rumo a uma sociedade globalmente pós-tradicional. 

Mas afinal, o que isso significa? Basicamente que há uma extraordinária relação entre as decisões que as pessoas tomam no seu dia-a-dia e os seus resultados globais. O inverso também ocorre simultaneamente, é cada vez maior a influencia das ordens globais sobre a vida dos indivíduos. 

O abandono, a desincorporação e a problematização das tradições fazem parte deste processo e são as principais característica da sociedade pós-tradicional. A tradição é estabilidade. Ela proporciona as estruturas estabilizadoras que criam uma “memória coerente”, fornecendo o que Giddens chama de uma "segurança ontológica", no caso, diminuindo a contingência do mundo para os indivíduos. 

Na sociedade pré-moderna, a tradição e a rotinização da vida cotidiana eram intrinsecamente ligadas uma à outra. Por outro lado, na sociedade pós-tradicional a rotinização torna-se vazia, a menos que este ajustada aos processos da reflexividade institucional. Não há lógica em fazer hoje o mesmo que fizemos ontem, exceto em instituições como o trabalho e a burocracia. A repetição é a lógica da tradição. 

Por outro lado, um traço fundamental da sociedade pós-tradicional é o “projeto reflexivo do eu”, ou seja, a construção e reconstrução contínua do eu sem a tradição, que depende de grande grau de autonomia emocional. Se anteriormente a identidade dos indivíduos era produzida em grande parte pela tradição, na sociedade pós-tradicional o indivíduo é obrigado a conviver com uma série de escolhas para as diferentes esferas de suas vida.

À medida que a tradição desparece, a construção da identidade e o significado das normas sociais regidas por ela vão aos poucos perdendo sentido. Deste modo, construção de uma identidade social torna-se uma responsabilidade e uma exigência individual. O individuo não tem outra escolha a não ser decidir como ser e como agir. Não obstante, essas escolhas cada vez mais se oferecem sem que tenhamos algo que seja um princípio estruturador que nos diga qual o caminho certo a seguir. 

Portanto, em uma época que a sociedade está em vias de destradicionalizaçao, como a nossa, as identidades não são mais dadas a priori. O indivíduo tem que fazer suas escolhas. E a sua opção sexual/afetiva (nem todas as relações são sexuais) faz parte destas novas demandas sociais existentes. 

Diferentemente de períodos como na Grécia Antiga, onde a tradição estabelecia que os filhos dos cidadãos fossem iniciados sexualmente por um tutor mais experiente do mesmo sexo, a homoafetividade na sociedade pós-tradicional é uma questão de escolha. Ainda que existam muitos estudos que buscam ligar certos genes a homossexualidade e se conheçam diversos relatos de pessoas que consideram ter nascido homossexuais, cabe ao indivíduo exercer ou não está predisposição (assumindo, em termos, que possa se tratar de uma predisposição).

Atualmente são as escolhas ativas produzem autonomia, ou mesmo são a própria autonomia. Obviamente, a psicanálise já havia colocada as limitações inconscientes, que orientam nossas escolhas. Assim como existem fatores estruturais da sociedade, decisões tomadas por agentes a nossa revelia, afetam a vida dos indivíduos. Ainda assim, as escolhas tornaram-se uma parte importante e obrigatória da vida cotidiana atual.

Vivemos em uma sociedade que cada vez mais exige que os indivíduos façam as escolhas que vão construir sua identidade. A simples repetição dos modelos de relação afetiva tradicionais, ainda em voga no direito, é completamente vazia neste contexto. Dentro dessa nova realidade, é um imperativo da modernização social e jurídica que o indivíduo tenha autonomia emocional e seja livre para exercer a escolha de a quem deve se unir, que tipo de relações deve ter e com quem irá interagir, da maneira que melhor lhe aprouver.  

Atenciosamente,
Vinícius Rauber e Souza
Sociólogo
Mestre em Ciências Sociais pela PUCRS


Um comentário:

  1. Excelente reflexão Vinicius, o Estado moderno não dá conta de contradições como um indivíduo ter direito ao voto, mas não ao casamento, caso ele seja homossexual. Nessa sociedade de consumo e segmentada em classes, a idéia de igualdade esbarra em algo maior que tabus sexuais e dogmas religiosos: Ao assumir minha orientação sexual construída pelas minha vivências particulares, rompo com a tradição e posso ir além e contribuir para uma sociedade mais evoluída, livre de crimes de ódio, com espaço para toda a forma diversidade, não só a sexual. Parabéns Vinicius!

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